Tuesday, April 19, 2005

DA DISSIMULACÃO

escrevo, é certo, mais para ocultar
faco sonetos não sei bem por que
coloco em versos o que ninguem vê
ou sequer sente, nem quer escutar;

desloco este Parnaso até o inferno
onde vou me danar sem alforria
persigo - cego - o rastro da Poesia
e o que de mim pudera ser eterno;

me oculto no soneto, essa facanha
de todas a menor, a mais estranha
e atéao pensar o faco em decassílabos;

este meu coracão que à alma empresto
a ela contamina e , assim, de resto
não chove nem faz sol e a hora é incerta.

CARNE DE PESCOCO

me ancoro na virtude, amo o Vício
e o Caminho já não me captura.
Perdi o senso e ainda que sentisse
o mal na pele ao largo da Ventura

contra a Natura e em franco desespero
barganharia um tácito armistício.
Largo a Fortuna, a previsão, o esmero
e ando sorrindo aos cravos do suplício.

De fato em nada mais eu acredito
e assim destilo, em gotas, a ironia
quer no sentido lato, quer no estrito;

recolho as armas, ponho o meu pijama
e vou sonhar com a Musa, essa vadia
que (há muito tempo já) não mais me engana.

INTRAVENOSA

eu odeio sonetos e à mão cheia
despejo mais sonetos por aí
não seique praga é essa em minha veia
não sei e se soubera me esqueci


vim de apagar-me: o palco é um insulto
a uma alma que habita no sereno
mas o que nego a mim em mim avulto
e ainda que morra afogo-me em veneno

eu vivo em tese e em tese me abandono
me nego e me apago no soneto
como este que me dá ainda mais sono

não sei se escrevo já o que oolho inventa
ou o que a vida trouxer reinterpreto:
qual a palavra que me representa?

ANTES DO APOCALIPSE

ao que de dentro da névoa retorquiu
mínimo
impenetrável
o Afogado:
"já não me cripta mais
o que te acende num meio dia de sombras devastadas
onde plantavas simetrias da Verdade
e eu
lívido arauto das estrelas frias
fixas ancestrais orava incréu ao vento peregrino:
ensina-me a passar
ensina-me a passar

Monday, April 04, 2005

AMOR AMOR

derramo assim em sua boca
lábara palavra líquida ardente lava espessa ao fim
luminescente rum leite de sílabas sabor
de duro travo um pouco amarga
eu sei você diria
mas não que apague o último sorriso
e o que me capta o olhar
em que se foram enfim
se foram

lábia de constelações na sua boca
acende

Thursday, March 31, 2005

A DANÇA DO DERVIXE ANTES DA GRANDE QUEDA

a vertigem da descida me devora
e me apaixona
lances e lances abaixo
essa dança sem memória não tem fim
porque o tempo antes da queda me apavora
e me fascina
sou eu solto no ar sem chão ou trampolim
e novos cortes na ferida antiga
espelhando o vazio
a solidão
o fim

2004

...

lutei demais contra essa sensação
de fracasso
banquei o jogo
hoje deponho as armas
aqui
defronte ao mar e sob
um céu de chumbo impenetrável
onda após onda
- feito uma vida sucessão de vésperas
adultério de tudo
sofisma de sofismas –
me lembra que a cada dia
sucede outro e outro
e
assim
entre desertar ou ir
até o fim
traço mais um erro
calculado
pego novamente o bonde errado
e caio fraturado
em mim

1996

CARTAS CARTESIANAS

(desentranhado de um texto de Renè Descartes)

a obscuridade das distinções
(entre o errado e o certo
entre a justiça e a injustiça
entre o real e o sonho
entre a dúvida e a certeza)
e dos princípios de que estas distinções se servem
é a causa de alguns homens
poderem falar de todas as coisas
como se as soubessem
e de sustentarem o que dizem
contra os capazes
e os mais sutis
mesmo sem ter qualquer meio
de os convencer

por isso
tornam-se comparáveis a um cego
que para lutar
sem desvantagem
contra alguém que não é privado
desta luz que nos protege
levasse o adversário
para o fundo
de um subterrâneo
muito
escuro.


(DISTINGUIR: o ponto de partida para uma perfeita avaliação)
1995

NEON

mascavo e dissonante
o celacanto
esmaga flores rubras flores outrossim
hiberna as estações como se não bastasse
e antes macera
o nervo flores bruma crivos som
essa nervura

(úmida e quente, assim)

daqui do subsolo tudo é muito escuro – onde repousam meus olhos
a luz pode cegar quem a deseja
e o mundo ancora
ancora
ancora
ancora

(levanta
a perna amor
mais
um pouquinho)

no seu pulsar rascante
todo de ar-
estas contra o ar-
estado círculo transfigurado áspera esfera
já sem todo viço

(não para não para não para)

ainda assim deseja sobretudo se confrontar com a sagrada e in-
traduzível música dos arpões.

Friday, March 25, 2005

UM DRINK COM RIMBAUD

Vou para um mundo negro
feito um cego
procuro meu degredo
busco sinais pelo século
filosofias sistemas sofismas
cismas
tudo é quase secreto
sob o véu de um céu aberto
chaga
vou pra esse mundo e nego
seus fundamentos
sou secamente guiado
pelo momento
sinal aberto
e nem assim desperto
do sonho:
PRIVADO DA MEMÓRIA ESTOU FELIZ

Wednesday, March 23, 2005

EFEITO & CAUSA

a vida imita a arte.


perdido nestas folhas
mortas entre versos que
brados letras vencidas agora
entendo porque esta vida
de merda.

pequeno epílogo

ninguém apressa o ritmo do tempo
o ritmo do ritmo do tempo
- o it do ritmo: rito do tempo?

em pessoa

largo o Universo e vou sentar na areia
meus olhos não são mais os mesmos
vejo o tempo atravessar o tempo
e arrisco um lance
faço perguntas num desenho lento
ninguém responde
e esse silêncio é o espaço que me cerca

quem há de ter os dedos pra tocar
o coração do centro dessa ânsia
que nunca apressa o ritmo do tempo?

PAVIO

1.
o dia dispara seus CONTRA tempos
CONTRA meus olhos lentos
- na marra
meu lábio seco finalmente toca
o hálito de teu sorriso ausente
essa aurora do meu sonho desatado
INDECENTE

2.
seu olho encarna então o tom sombrio
de quem sabe conjugar o verbo FRIO
como ninguém
esse pavio aceso ao meio-dia
sem ar/ OU

3.
BEM, você que sabe
traços de freios/ ERROS/ luzes/ GENTE
nos aproximam de um mar que estala
CONTRA meus olhos lentos
novamente
ao viajar pelo terreno urgente
do amanhã
gravado
a frio na pedra escura do presente.

MEDITAÇÃO ESCRITA A FRIO SOBRE A PEDRA

quando eu nasci um anjo porco
desses que andam nos esgotos
veio ler a minha mão
não disse nada
e de soslaio
seguiu subtraindo no ar de maio
todos os signos postos na escritura

quando eu nasci um anjo morto
louco cego súbito e inconstante
veio ler a minha mão
esse farsante
riscou um tôsco enigma em minha pele
sem anestesia:
será Poesia?

ALMA

beira do poço oco
silêncio
o côncavo do Homem
ao mesmo tempo
espelho e
fonte

...

iluminuras nuas
pegadas frescas de um passado antigo
indecifradas escripturas
de palavras tuas
oblíquas duras difusas
nunca ditas
feito o silêncio desse dia desenhado
crivado de enganos
fraudes
hipóteses
fragmentos do antes
marcados a frio na pele da memória
crua

: iluminuras nuas
tristes grafites em nosso muro
particular
intransponível
dividindo o espaço escuro

o poema

O POEMA

ao que me agarro essa nudez
total detrás das vísceras decerto
estranhamente naturais à espera
sim à espera despido o ornamento
o som o símbolo inespera o ser
na última fronteira e trava
o embate cego contra o nada ou contra
algum sereno que o esmaga deseja
sim deseja o que as coisas tem
o hábito de ser as mãos pousadas
ou mesmo passos na varanda
antiga já que por dentro em todos
os desvãos e em linha não tão
reta nem abrupta uma voz
sussurra às vezes grita
sossega leão
sossega
leão